Wednesday, June 07, 2006

argumento

[...] É o argumento.
Os meus olhos: lentes de uma qualquer máquina que filme. Faço os planos. Óculos escuros: um filme a preto e branco. Uma senhora caminha em direcção à câmera. É supervisora da linha de caixas numa grande superficie comercial. Plano Americano contra picado. É visível o papo entre o pescço e o queixo. Tem as sobrancelhas arranjadas, as unhas pintadas. Nunca foi ao teatro. Fim do filme. Alguns passos, tão não especiais que não sei quantos foram. Não há trama. Não há estrutura - mas há sempre principio, meio e fim. Tragédia, talvez.
O mesmo filme: versão cinderela.
Chama-se Celeste. É supervisora da linha de caixas numa grande superficie comercial, onde trabalha há 18 anos. Tem uma filha que estuda na universidade mas não é isso que a faz feliz. O curso não é relevante. Os 15 dias de férias todos os anos no Algarve (suponhamos que Monte Gordo) fazem-na feliz. Nunca foi ao teatro.
Parte Cinderela: um dia conhece um senhor da mesma idade, muito bonito, rico e boa pessoa. Decobre o sexo, aliás, descobre o prazer. Casam. A filha termina o curso. Casamento: o casal corta o bolo; estão felizes; sorriem para mostrar que estão felizes. Zoom nos bonecos dos noivos no topo do bolo. A imagem desfoca. Fim.
Depois do fim: um ano depois, o homem da mesma idade, muito bonito, rico e boa pessoa, morre num qualquer acidente. Não interessa o acidente, a coisa já se tornou demasiado irreal no momento em que ele se apaixonou por ela. Atenção: o papo entre o queixo e o pescoço mantém-se; é uma nova versão mas a personagem é a mesma. Ele morre. Em dois anos ela está sem dinheiro nenhum. A filha desapareceu. Celeste é uma mulher infeliz. Morre muitos anos mais tarde, infeliz, sem ir ao teatro. Fim do que acontece depois do fim.
Se Celeste fosse mais bonita e tivesse frequentado o teatro, poderia morrer de forma mais bela. Por exemplo, beber um qualquer veneno e morrer na plateia de um qualquer teatro ornamentado com motivos dourados alusivos aos teatros de um século qualquer passado, enquanto assistia a uma qualquer tragédia grega. Mas não. O filme terminou no casamento.

1 comment:

Ins-pirada said...

Nota mental: nunca deixar de ir ao teatro...